Saturday, January 28, 2012

Engenheiros: inovar versus descobrir, os "papers" e as "coisas"


Na intervenção no recente Workshop conjunto das minhas cadeiras de Inovação e C&T, dos programas doutorais da Escola de Engenharia e do EDAM MIT Portugal, o professor António Araújo manifestou de forma clara e vincada a sua incomodidade perante o processo de avaliação académica em engenharia.
Recordam-se os seus pontos essenciais:
- engenharia é diferente de ciência,
- escrever "papers" não parece ser a vocação de engenheiros,
- afinal o essencial da engenharia parece passar ao lado da atividade académica em engenharia.
Estamos de acordo. Vale a pena discutir estas ideias.
A ideia de que ciência e tecnologia são coisas muito diferentes é um dos "leitmotivs" da nossa abordagem pessoal sobre inovação tecnológica. Na realidade a confusão entre as duas coisas é um dos problemas mais lamentáveis do ensino superior em Portugal, e não só, nas áreas da engenharia e das tecnologias.
O objectivo da ciência é descobrir conhecimento, enquanto que o objectivo da tecnologia é inovar, criando novas combinações de artefactos adoptados por comunidades de utilizadores que neles encontram valor acrescentado. Descobrir e inovar não são a mesma coisa. São mesmo muito diferentes. Inovar pressupõe valor num mercado, e o valor da inovação é dependente da evolução económica dos mercados. Logo por natureza uma inovação tem um ciclo de vida e uma temporalidade finita, ao contrário do conhecimento da ciência, que em principio é intemporal (até ser eventualmente refutado ou mostrado como falso) e independente das vicissitudes do mercado e valorizações pelos utilizadores, reais ou potenciais. A "verdade" da ciência é o resultado de um processo de emergência (no sentido da teoria da complexidade) de consenso entre a própria comunidade científica, em função do seu enquadramento nos paradigmas conceptuais vigentes nessa comunidade (Kuhn e, especialmente, Polanyi) e da evidência da sua falsidade, ou não (Karl Popper). Em ciencia não há inovação, mas sim descoberta. Em tecnologia não existe verdade, mas existe sucesso: a adopção de uma certa ideia do uso do artefacto por uma comunidade de utilizadores que deles tiram partido (valor), no seu contexto especifico de utilização (logo, nas condições da sua própria existência civilizacional). Logo os critérios de avaliação de descoberta e inovação são completamente diferentes. É por isso dramática a tendência (crescente nalguns sítios, inclusive na UM) para querer adoptar critérios de avaliação "científica" para a avaliação "tecnológica" - e o resultado são monstros inqualificáveis como essa coisa do RAD, que pervertem a vocação de uma Escola de Engenharia, atrasam o desenvolvimento tecnológico, prejudicam a formação dos alunos e a inserção de verdadeiros engenheiros e tecnólogos no ensino universitário.
Compreende-se bem a incomodidade do António: depois de dois anos na ESA e (quase) dez anos integrado no team de Fórmula Um da Toyota (cerca de oitocentas pessoas!, baseado em Colónia, na Alemanha) com responsabilidades sobre equipes de engenharia do team, logo em circunstâncias altamente competitivas, quer sob o ponto de vista interno como externo, com uma forte pressão de inovar e ter sucesso em curto prazo, por natureza nas fronteiras da tecnologia (engenharia), o choque do ambiente académico é perfeitamente compreensível.
Não porque a vida académica não seja altamente competitiva - na realidade hoje em dia é. Mas é uma competição muito diferente da competição do mercado tecnológico, e onde os critérios de sucesso são completamente diferentes dos critérios que avaliam o sucesso no mercado da engenharia e das tecnologias - é uma competição baseada no sucesso de publicações (papers), ainda por cima geridas por critérios de valor "científico", e não tecnológico.
Passar do mundo de fazer coisas novas e avançadas que funcionam (vão e vêm á ISS no espaço, estão dentro de semanas a correr nos carros a competir nas pistas de Fórmula Um) para o mundo dos "papers" onde os critérios de sucesso (publicação ou não, e onde) são definidos de forma completamente diferente, e mesmo sem relação alguma com os critérios anteriores, é naturalmente um grande choque. Porque é passar para um mundo onde as competências (skills) para o sucesso são completamente diferentes, competências essas que se aprendem num mundo que não é o da engenharia real (mas que são competências que realmente se podem aprender de forma progressiva - um ponto geralmente ignorado hoje em dia, mas que não tem muito a ver com a tecnologia e a engenharia).
A realidade é que o essencial da engenharia parece passar ao lado da atividade académica em engenharia. A avaliação dos doutoramentos é feita pelo sucesso dos "papers" e não pelo sucesso (ou promessa de sucesso) dos artefactos e das tecnologias desenvolvidas. A avaliação das carreiras académicas é feita por critérios de papers e citações. Os doutorandos e os académicos queixam-se, com razão, que têm muita dificuldade em publicar sobre protótipos e semelhantes (o que é verdade: as equipes editoriais são em geral ignorantes e, tal como muita outra gente, mesmo na academia, confundem inovação com novidade - coisas muito diferentes). Ou seja, um doutoramento em engenharia acaba por desenvolver competências que não são as essenciais da engenharia, com manifesto detrimento das essenciais - desenvolver "coisas" que funcionam melhor e que são mais úteis (com maior valor, pelo menos potencial). Note-se que não estamos a dizer que a competência de escrever e publicar é irrelevante ou pouco útil - não, até porque a consideramos muito importante - mas não é o essencial da engenharia. É um complemento, depois do essencial.
Há poucos meses ouvimos um dos grandes professores do MIT começar uma intervenção numa conferencia MIT Europe, em Viena, com umas palavras muito significativas. Qualquer coisa como: "Nós, no MIT, acima de tudo gostamos de falar dos nossos protótipos e nos nossos modelos de simulação, não dos nossos papers". Mensagem clara, com muitos destinatários, e uma marca de diferenciação. É por isso incompreensível que nos critérios internos para avaliação do sucesso das atividades do MIT Portugal entrem prioritáriamente os papers - e os contributos para as empresas afiliadas, os protótipos desenvolvidos, etc., sejam secundarizados e, pior do que isso, ignorados e mesmo desvalorizados.
Para post de um blog, isto já vai longo. Mas provavelmente voltaremos ao assunto.

1 comment:

  1. Obrigado Professor por escrever isto que tem de ser partilhado.
    Só o seu conhecimento permite colocar estas coisas tão bem colocadas.
    Eu partilho destas preocupações como aluno.
    Como profissional "praticador" da Gestão de Sistemas de Informação gostava que o percurso de doutoramento acompanhasse e contribuísse para a minha aprendizagem em "fazer melhor" e não só em "conhecer melhor".
    Eu continuo a protestar e a afirmar (na minha enorme ignorância) que é possível contextualizar o programa doutoral com a aplicação prática da engenharia, ganhando com a experiência de quem exerce a engenharia no mercado empresarial.
    E agora como consigo eu também demonstrar isto e contribuir no meu caso ?!?

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