Tuesday, January 17, 2012

A morte de um grande inovador


Meus senhores e minhas senhoras, sugiro que tirem os chapéus e apresentem os vossos respeitos. Uma das (poucas) empresas simultaneamente multinacional e centenária, e um grande "transformador" do mundo e da sociedade, está a morrer. Chama-se Kodak.
Nascida em 1880, há mais de cento e trinta anos, a situação parece desesperada. Recentemente o fabrico do produto mais emblemático (o filme Kodachrome), porventura um dos mais inovadores criados pela empresa, e tradicional cash cow da Kodak, foi descontinuada, depois de 75 anos no mercado (ver comentário na Newsweek).
Os habituais treinadores de bancada falarão depois de "erros de gestão" e similares. Mas grandes gestores e milhares de funcionários dedicados não parecem ter sido capazes de evitar o desfecho. Entretanto o website oficial anuncia que a empresa ganhou vários prémios por inovação no último CES (Las Vegas).
Alguma literatura recente constitui interessante "food for thought". O The Economist publicou nos últimos dias dois interessantes textos. Num ("The last Kodak moment", 14 janeiro 2012) comparam-se as trajectories da Kodak e do seu arquirival, a Fujifilm, e os diferentes sucessos conseguidos nos dias de hoje. Noutro ("Out of focus", 12 janeiro 2012) recorda-se a capacidade inovadora da Kodak na introdução das tecnologias de imagem digital - na realidade a Kodak foi percursora na própria tecnologia que a havia de dizimar.
Também o WJS tem seguido o caso da Kodak. Um dos últimos artigos ("Kodak did not kill Rochester. It was the other way around", 14 janeiro 2012) relança a tese do impacto do isolamento geográfico, já discutida no primeiro dos artigos do The Economist. Entretanto a Fortune (8 janeiro 2012) recorda um artigo publicado em 1883, "Embattled Kodak enters the electronic age", excelente complemento ao segundo dos artigos referidos do The Economist.
Em 1976, a Kodak tinha um invejável market share de 90% do filme e 85% das câmaras fotográficas  nos USA. Até aos anos 90 sempre foi votada como uma das marcas mais bem reconhecidas e mais valiosas dos USA. A sua história está (tal como a da IBM) cheia de patentes e de produtos inovadores, alguns dos quais constituíram verdadeiros marcos civilizacionais. A tradição da Kodak sempre se caracterizou (tal como a da IBM) por elevados investimentos em I&D, uma rigorosa cultura industrial e fortes relações com a comunidade. O valor das ações está quase a zero (ver gráfico seguinte: cotações dos ultimos dez anos). Como foi possível chegar à situação presente?


Recordo bem quando as primeiras máquinas fotográficas digitais chegaram ao mercado de grande consumo, anos 90. Não eram baratas, a qualidade de imagem era apenas aceitável, desde que não se ampliasse muito. Facilidades de zoom limitadas. E, claro, era preciso ter computador e saber usa-lo, o que há vinte anos não tinha a mesma difusão que tem hoje. Mas para fazer uma ampliação a sério, nada se comparava como a "prata" do filme fotográfico clássico. O futuro da prata estava assegurado para as imagens de grande qualidade (migração do incumbente para os nichos especializados de mais alto valor acrescentado). Estava? Afinal não. A própria tecnologia disruptiva atingiu e ultrapassou esses níveis de funcionalidade numa escassa década. Hoje uso uma câmara digital (Nikon D90) com qualidade porventura superior a qualquer câmara analógica então disponível, e os meios de impressão são mais baratos e de qualidade equivalente ou superior. Uma situação típica de uma tecnologia disruptiva.
A forma como a Kodak tentou lidar com o ataque disruptivo, ainda por cima largamente de geração endógena, será certamente objecto de muitas análises.
Alguns comentários:
Primeiro, a opção "uma empresa de imagens" versus "uma empresa de produtos químicos especiais", tomada durante a década de 90, terá sido um erro: afinal de contas foi entrar em terrenos onde a empresa não tinha competências e vocações próprias, em especial nos domínios de marketing, comercial e canais de distribuição, ao mesmo tempo que perdia uma área  de competências"raras".
Segundo, uma empresa concentrada geograficamente numa única cidade (Rochester) cria uma cultura fechada que pode ser contraproducente e constituir um handicap quando se trata de mudança de cultura empresarial. O universo fechado tende a fechar horizontes e a tornar mais difícil a influencia de "ligações fracas" e a abertura à mudança do modelos de negócio. Esta é uma situação bem conhecida nos clusters (o caso da decadência do cluster de empresas de borracha na zona de Akron (USA) é dos mais bem estudados), em situações em que os retornos crescentes se manifestam de forma negativa - sempre na forma de um vendaval devastador.
Terceiro, o excesso de perfeccionismo, que sempre caracterizou a cultura da Kodak (assim como a da IBM nas décadas de 80 e 90) pode ser muita perigosa. A Microsoft sempre cultivou o modelo oposto, no mercado do grande consumo, ocupando espaço de mercado mesmo que sorrendo riscos. Até mesmo a IBM foi em tempos especialista em "vapourware", produtos ainda inexistentes anunciados só para ocupar espaço de mercado e desencorajar a concorrência.
Quarto: a fotografia digital abriu um mercado novo de uma multidão de "não utilizadores" ou "quase não utilizadores" da fotografia tradicional. Como é tipico das situações disruptivas, transformou multidões de não consumidores do produto incumbente em consumidores do novo produto, mais fácil de usar e muítissimo mais barato (mesmo que porventura menos perfeito, o que até isso está a deixar de acontecer). A fotografia deixou de ser para fotografos e banalizou-se. Para uma empresa (Kodak) para fotografos como clientes alvo, a mudança foi dramática. O espaço para ganhar (algum) dinheiro com a captura de imagens passou dos fabricantes tradicionais de máquinas fotográficas para os fabricantes de camaras digitais de grande consumo e depois para os fabricantes de telemoveis e smartphones. Por si, está a desaparecer. A oportunidade para ganhar dinheiro na impressão de fotografias passou dos laboratórios de fotografia para as impressoras e, pior do que isso, a impressão da foto deixou de ser importante para a sua visualização. Ver uma imagem num computador, num telemovel ou numa tablete associa uma magnifica experiencia visual com um custo marginal simplesmente nulo. Numa década, todas as componentes de valor do processo fotografico de grande consumo desapareceram (ou quase). Tal como nas procuras do Google Scholar versus Web of Science e Scopus, a incumbente Kodak (tal como a Thomson Reuter e a Elsevier) acabou por se ver a competir com produtos (máquinas, fotos) que se tornaram gratuitos (ou quase).

F.up: artigo da Business Week: 13.janeiro.2012.

Follow up adicional: FT, 2 julho 2012: para além do assunto Kodak, a questão da perenidade dos
arquivos digitais na "cloud":

  • Happily, I didn’t store all my back-up snaps there – but I could well have done. Even 10 years ago, if you were betting on any company’s photo website to keep your memories safe for a lifetime, it would probably have been the one owned by Kodak.

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