Saturday, January 21, 2012

Stiglitz, Portugal e a política

1. Um artigo de opinião no Expresso, de 21 de janeiro de 2012, por Martim Figueiredo, recolhe alguns comentários informais de Stiglitz durante um jantar, no decorrer da sua recente passagem por Portugal, patrocinada pela associação das empresas de (grande) distribuição, a APED.
A primeira ideia: a circulação monetária depende da confiança da economia, e se não existir banco emissor de ultimo recurso, o mercado entende que a circulação não está garantida. Como se sabe, este é um problema estrutural do Euro. Sob o ponto de vista político, as palavras (esperadas) de Stiglitz constituem uma agenda política alternativa para Portugal: "Portugal devia juntar-se à Itália, e combater ferozmente o disparate alemão".
A segunda é mais complexa, e "tenebrosa" (como a qualifica o autor da nota no Expresso): "Portugal não cresce porque esgotou as ferramentas macroecónomicas para o fazer". Temos as nossas dúvidas sobre isso, e a questão ter-se-ia que por ao nível de Portugal e da UE (ou pelo menos da zona Euro). Assinalamos os vários itens do argumento de Stiglitz, uma vez mais tal como referidos pelo autor da nota:
  • Portugal terá esgotado a estratégia keynesiana do investimento em infraestruturas (públicas). Será verdade? Temos imensas dúvidas disso - num país com uma má rede ferroviária, sem acesso à rede europeia de alta velocidade ferroviária, ainda com muitos problemas de acessos rodoviários nas zonas periféricas, ainda com grandes espaços de necessidades para melhorar a qualidade das infraestruturas de ensino, de saúde e da justiça, há certamente ainda muita necessidade de melhoria de infraestruturas. A tese anti-infraestruturas, segunda a qual Portugal não precisa de mais cimento, é uma "neo-parolice nacional", centrada em Lisboa, que reflete uma retrógrada postura política anti desenvolvimentista, sob a capa do argumento financeiro, e que sonha com um retorno ao desacreditado "laissez faire" como a fonte de soluções privadas para os problemas e necessidade públicas.
  • a industria de manufactura já não compete com os países de mão de obra barata. Sinal positivo ou negativo? Entendemos que é positivo. Passamos agora a ter que competir com a Alemanha, UK e outros países mais desenvolvidos, mais do que com "o resto" ainda emergente ou subdesenvolvido. E competir com os mais competentes é a melhor forma de melhorar ainda mais. É espantoso como alguns que reiteradamente clamavam contra um Portugal de baixos salários parecem ser muitas vezes os mesmos que agora clamam contra o custo excessivo da mão de obra portuguesa, e querem resolver essa questão com acordos pouco relevantes, como o recente acordo de concertação social, que parece ser remeter as empresas portuguesas para um paradigma competitivo felizmente já ultrapassado e simplesmente baseado em salários baixos. Miguel Sousa Tavares, no mesmo numero do Expresso, faz um comentário certeiro sobre este ponto: o acordo é irrelevante para as boas empresas, e para as más empresas pouco mais será do que paliativo pouco relevante.
  • a industria tecnológica demora no mínimo dez anos a dar resultados, e o mesmo acontece com as reformas estruturais. De acordo sobre a tecnologia: a forte não linearidade dos resultados da chamada I&D (especialmente o D de desenvolvimento, basicamente empresarial) torna de muito alto risco qualquer política baseada nesta ideia, apesar de ela ser altamente atrativa para a classe política. Esta terá sido a grande ilusão do "choque tecnológico" com que José Sócrates sonhou na parte inicial do seu primeiro mandato. Porque é uma política de resultados "ingeríveis" no curto e médio prazo, precisamente o prazo essencial para o jogo político corrente.
  • as exportações produzem efeitos rápidos se existir um choque fiscal que desvalorize artificialmente a moeda. O que não estamos em condições de fazer. Sem mecanismos de desvalorização da moeda, inviáveis no espaço do Euro, fica um choque do tipo "redução da TSU" - um modelo teórico que o governo rapidamente compreendeu que na prática seria inviável e um desastre, socialmente insuportável pela transferência de rendimentos (indiretos) dos trabalhadores para os empresários e a banca.
No mesmo número do Expresso aparece uma entrevista com o próprio Stiglitz, em geral sem grandes novidades. Assinala-se uma passagem, aliás muito coerente com anteriores opiniões suas: "as medidas de austeridade comprometem o desenvolvimento. O que vai tornar ainda maiores os problemas da dívida. (As agencias de rating) Estão absolutamente correctas em relação a isso".

2. A credibilidade de Joseph Stiglitz vem-lhe tanto da sua experiência como Chief Economist do Banco Mundial durante três anos, até 2000, como do seu anterior papel na administração do Presidente Clinton, como também por ter ganho o prémio Nobel, em 2001, pelos seus trabalhos em economia da inovação e da informação, em particular sobre os efeitos da assimetria da informação no funcionamento da economia. Pouco depois de sair do World Bank, Stiglitz publicou vários livros. Em 2003 publicou "The roaring nineties", com o subtítulo "We are paying the price for the greediest decade in history" - ainda uns bons anos antes da crise financeira de 2008. O livro foi publicado na ressaca da bolha da internet ter rebentado, e da tal "nova economia" afinal se ter mostrado pouco nova. Em 2010 publicou "Freefall: America, free farkets and the sinking of world economy" onde analisa as questões de regulação levantadas pela crise de 2008.
O capítulo 11 de "The roaring nineties" desmistifica algumas ideias feitas prevalecentes sobre as políticas económicas e os acontecimentos da década de 90. No início do capítulo Stiglitz agrupa-os nos seguintes mitos (palavra usada pelo próprio):
  • que a redução do deficit foi, por si, a causa da recuperação económica na década de 90. "No curto prazo, os deficits podem ser absolutamente essenciais para recuperar de uma recessão, e os custos económicos e sociais de prolongar uma recessão são enormes, muito maiores do que os custos associados ao aumento do deficit" (p. 170).
  • que o brilhantismo dos economistas (americanos) criou uma época e um modelo de nova prosperidade (americana), que deve ser exportada globalmente. "As economias são como grandes navios, não podem dar a volta rapidamente" (p. 171).
  • que a chave do sucesso reside na submissão aos mercados financeiros. "Os mercados financeiros não são a fonte da sabedoria; o que é bom para Wall Street pode ou não ser bom para o resto da sociedade; os mercados financeiros são de vistas curtas. Um país que se deixe submeter unicamente à disciplina dos mercados financeiros está a correr um perigo por sua própria conta e risco" (p. 176)
  • que a globalização do modelo americano conduzirá inevitavelmente à prosperidade global, beneficiando simultaneamente os mercados financeiros e os pobres dos países em desenvolvimento. "O sistema económico americano tem imensos méritos, mas não é o único sistema que funciona - outros sistemas poderão funcionar ainda melhor, para outros países" (p. 178).
Num dos seus livros seguintes, "Making globalization work" (2006; Penguin, 2007), Stiglitz continua a análise crítica do sistema económico, rejeitando o "fundamentalismo dos mercados", segundo o qual o funcionamento dos mercados por si só conduziriam à eficiência económica - a tese ultra liberal, com raízes fortes em Hayeck, e que atualmente domina as políticas económicas e sociais em Portugal.
Uma observação no capítulo 8 (O inferno da dívida) parece muito atual para a situação na Europa: "Enquanto que todos os países industrialmente avançados reconheceram a importância de leis de falência que ajudem pessoas e empresas a reestruturar dívidas insuportáveis, não temos um conjunto paralelo de leis que regulem a reestruturação da dívida soberana e que o permitam fazer de forma justa, eficiente e expedita" (p. 213).

3. Sendo Stiglitz um reputado economista, mas reconhecidamente um social keynesiano e anti liberal, a sua vinda a Portugal para falar num evento da APED não foi certamente por razões académicas, e só pode ter uma interpretação política: um voto de desconfiança nas atuais políticas governamentais e europeias, pelas grandes empresas de distribuição, e respetivas casas-mãe (SGPSs, holdings).

Anexo:
Hà alguns anos atrás, em 2002, no início do mandato de Durão Barroso, Michael Porter veio a Portugal, com grande fanfarra, a convite de Mira Amaral & seus amigos. Na altura escrevi um artigo, que foi publicado no Expresso, entitulado "Porter, Portugal e a política", de onde se tirou inspiração para o título deste post. Esta ideia de contratar nomes sonantes da academia, conforme as conveniências, para a luta política não é nova, nem sequer será ilegítima. O que pode ser menos aceitavel é que não se assumam claramente os objectivos da intervenção.
(Adicionado a 28.janeiro.2012)

(Citações com itálicos da nossa responsabilidade. Páginas das citações dos livros de Stiglitz referem-se às edições paperback da Penguin Books, 2004 e 2007, respetivamente)


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