Sunday, February 5, 2012

Ciência e tecnologia: revisitando Tycho Brahe

Tycho Brahe (1546-1601) foi uma personagem fantástica do Renascimento. Um excêntrico e faustoso nobre dinamarquês, contestário, uma personagem forte, mas pouco recomendável. Um tirano irrascível nos seus domínios, um artista da intriga palaciana, homem de grandes bebidas e comidas.
Mas também um homem que ajudou a mudar a visão cósmico do mundo, a inventar a "nova astronomia" e a criar a ideia de conhecimento com base empírica em dados observados, ligados à realidade, e rejeitando uma realidade como consequência de teorias metafísicas.
Vale a pena rever esta personagem, na sequência dos post anteriores sobre ciência e tecnologia.

Em primeiro lugar por causa do valor de observações únicas ou raras em ciência, e da importancia do contexto teórico no conhecimento científico. Tycho apercebeu-se, com espanto e até mesmo com incredulidade, do aparecimento de uma nova estrela, na noite de 11 de Novembro de 1572, quando se preparava para ir jantar, e se deslocava do seu "laboratório" (hoje considerado como o primeiro centro de investigação moderno, dedicado à observação experimental dos astros) para a sua casa.  
Hiparcos, 125 anos antes de Cristo, anunciou ter observado algo semelhante, o que era incompatível com a teoria. Por isso o anuncio de Hiparcos era tido como um "erro", incompatível com o quadro de referência clássico, uma observação não credível e nunca confirmada. Mas a observação de Tycho dava nova vida a uma tal observação e implicava a falsificação da doutrina clásssica, segunda as qual as estrelas eram parte imutável do universo. A observação de Tycho, entretanto confirmada por outros astrónomos, suportava a falsidade do quadro de referencia vigente - daí a sua importância. 
“A reprodutibilidade de um facto torna a sua observação excecionalmente fiável, enquanto que a sua recorrência revela que faz parte de um sistema natural” (Polanyi, Personal knowledge, pg. 137). O interesse sistemático de um facto pode ultrapassar completamente a sua ausência de regularidade – caso da descoberta de Tycho nessa noite de 1572, quando integrado num contexto teórico que o torna relevante. Tycho certamente não teria notado o fenómeno (como muitos outros que não o viram) se não estivesse rotinado na observação sistemática do céu, e se não tivesse acumulado um enorme conhecimento tácito da geografia celestial nessa zona – e se não tivesse uma motivação sistemática ou teórica para se interessar pelo acontecimento. Mentes preparadas ou motivadas são fundamentais para o processo de descoberta.

Em segundo lugar porque Tycho começa a modificar o paradigma prevalecente do conhecimento clássico. Tycho foi um observador sistemático do céu, e tentou mesmo formular um modelo que estivesse de acordo com o que observava, ou pelo menos com uma parte importante daquilo que observava. O seu modelo geo-heliocentrico, que ele julgava coerente com as observações existentes, era um modelo misto entre o proposto por Copérnico e o clássico de Ptolomeu. Por exemplo, as fases do planeta Vénus, que não eram explicáveis pela teoria clássica, eram coerentes com a proposta de Tycho. Apesar de ter conhecido alguma popularidade, o modelo de Copernico acabou por se impor, especialmente depois de Galileu. 
O grande contributo de Tych foi metodológico, na recolha sistemática e precisa de dados astronómicos. “Tycho não terá sido um génio criativo, mas foi um gigante da observação metodológica”, diz Koestler (The sleepwalkers, 1968, p. 297).
A construção teórica suportada e guiada pela evidencia empírica foi uma importante novidade introduzida por Tycho, que se apercebe de que para compreender a astronomia eram necessárias observações precisas, mesmo muitíssimo precisas, mas também continuadas ao longo de anos (Koestler, p. 289). “A navegação oceânica, a crescente precisão dos compassos magnéticos e dos relógios, e o progresso da tecnologia criou um novo clima de respeito pelos factos por si e pelas medidas exatas”, recorda Koestler (p.290).
Foram as observações precisas e continuadas do céu permitiram a Tycho um remapeamento celestial, uma nova cartografia do céu, com mil estrelas, o que na altura representou um investimento fabuloso.


Em terceiro lugar, Tycho foi um tecnólogo que desenvolveu novos instrumentos para a observação precisa do céu. Desenhou e construíu múltiplos  instrumentos para medir com precisão a posição dos astros - uma absoluta novidade para a altura, com o adicional dos instrumentos serem desenhados para serem fáceis de montar / desmontar e transportar. 

O que vemos aqui é uma estranha ligação entre a descoberta científica e a inovação tecnológica motivada pelas necessidades da ciência - exactamente no sentido inverso do tradicional modelo "linear" da inovação. 
Mas o grande “tesouro” de Tycho eram afinal as suas coleções de dados sobre os astros, dados precisos e contínuos no tempo, em especial sobre o “planeta difícil”, Marte. Nunca ninguém tinha antes acumulado um tesouro destes. Kepler terá sonhado com o acesso a esses dados, que Tycho guardava ciosamente, quando, nos seus últimos tempos de vida, contratou Kepler como assistente de investigação.
Porque é que, para Kepler, os dados de Tycho sobre a órbita de Marte tinham a chave para o segredo do movimento dos planetas? Porque a órbita de Marte parecia afastar-se muito do circular. 

As observações coligidas por Tycho eram  aliás um drama para ele próprio, que defendia órbitas circulares no seu modelo geo-heliocentrico ( a Lua e o Sol andam à volta da Terra, enquanto que os outros planetas - Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno - andam à vota do Sol, todos envolvidos por uma esfera de estrelas fixas), e que por isso considerava esas observações como um grande e perigoso segredo. Mas para Kepler eram a oportunidade de poder traçar, ponto a ponto, a órbita do planeta e assim identificar a geometria da sua órbita – que afinal veio a verificar que era elíptica. Um facto que nem para Kepler fazia grande sentido: a que propósito é que havia de ser elíptica, e não circular? Ou outra forma de curva fechada? Na ausência de uma mecânica gravítica era difícil compreender a descoberta de Kepler. Seria Newton, alguns anos mais tarde, a esclarecer a questão. Um bom exemplo sobre a questão, abordada em post anterior, de que os dados em ciência só fazem sentido no contexto da teoria,

As leis de Kepler (órbitas elípticas dos planetas; velocidade linear variável ao longo da órbita, mas velocidade angular constante) foram as primeiras leis das modernas ciências naturais, inferidas a partir de observações empíricas. Koestler (1968, p.318) identifica aí "o divórcio da astronomia relativamente à teologia, e o seu casamento com a física".
Mas nem os modelos cósmicos de Tycho ou de Kepler sobrevieram até hoje à crítica da ciência. Sem prejuizo da relevância dos seus contributos. Mas as leis de Kepler sobreviveram, mesmo que o modelo cósmico de Kepler não tenha sobrevivido.
A morte de Tycho (em Praga, depois de sair da Dinamarca, na sequência de conflitos com o seu rei, que o levaram a abandonar, com grande pompa e espalhafato, o seu país de origem), esteve à altura da sua vida fantástica – e ainda hoje constitui um dos grandes enigmas da história, cuja exploração continua a ser desvendada por modernos métodos forenses. 
Sabe-se agora que afinal terá morrido por envenenamento com mercúrio. Experiências de alquimia que deram mal resultado? Ou a “vingança” de Kepler, que afinal seria depois o seu continuador como matemático oficial do rei? Ou antes vingança de Cristiano, então jovem rei da Dinamarca, sobre complicadas histórias familiares e de afrontas públicas e privadas, que aliás tinham estado na origem da sua saída da Dinamarca? (sobre o assunto ver artigo do Spiegel). Aguardam-se os resultados da última exumação de Tycho, feita em 2010.

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