Disse-se que o objectivo da ciência é a descoberta do conhecimento,
não é a inovação. Claro que conhecimento adicional pode facilitar
inovação - mas não obrigatoriamente.
Clarifique-se um ponto
essencial e muitas vezes objecto de confusão: a descoberta do
conhecimento não é um exclusivo da ciência. Há muito conhecimento, mesmo
formal, estruturado, explícito, cuja descoberta é feita fora do âmbito
da ciência, e nada tem de "científico", embora possa ser verdadeiro ou
muito plausível como verdade. Científico não é sinónimo de verdade (uma
confusão habitual e de consequências por vezes desastrosas).
A
obsessão de Popper era o problema (filosófico) da demarcação: o que é
que demarca o conhecimento científico do conhecimento não científico
(metafísico, na terminologia de Popper. Entre outros, o conhecimento
mágico entra aí). Para Popper apenas era relevante o conhecimento formal
e explícito - porque é o único que é vulnerável e pode sobreviver à
discussão e à crítica formal, logo pode ser falsificável, e
eventualmente mostrar-se que é falso (falsificado).
O desprezo de
Popper pelas raízes cognitivas do conhecer é bem conhecido, e a
principal fonte de críticas às limitações da sua abordagem e do seu pensamento. Polanyi
centrou-se precisamente nos aspectos cognitivos do conhecimento para
explorar novas formas filosóficas de raiz epistemológica, e por isso
mostrava simultaneamente algum apoio a algumas das ideias de Popper,
enquanto que rejeitava (e quase que ridicularizava) outras ideias -
muito em especial a ideia de Popper de que as origens das hipóteses em ciência (a
formulação dos problemas a resolver) são irrelevantes para a sua
discussão em ciência, e que não existem fontes de hipóteses mais
credíveis do que outras - todas são para abater pela crítica, sendo a
principal função da ciência é a eliminação
(evidenciar a falsidade) de hipóteses, tenham elas sido propostas como foram. Popper
serve-se emblematicamente da célebre carta de Einstein, reproduzida nos
anexos da The logic of scientific discovery (1959, ap. xii, pg. 481), em que Einstein
reafirma que a fonte de inspiração da sua inquirição sobre a teoria da
relatividade nada teve a ver com os problemas da física de então, mas
com os seus devaneios pessoais sobre um mundo "virtual" em que ele se
deslocasse à velocidade da luz, ou próxima. Polanyi também se serve
emblematicamente de outra carta de Einstein, com objectivos semelhantes
(capítulo 1 de Personal Knowledge, 1958, p. 10, nota 2). Mas a
indiferença de Popper sobre a importância dos aspetos cognitivos do
conhecimento foi também uma das suas grande diferenças com o seu "arquinimigo" principal
da altura: Wittgenstein, e a sua filosofia de raiz analítica, centrada sobre a linguagem. Peter Muntz terá sido o
único a ser discípulo de ambos, e procurou mostrar como as suas filosofias,
habitualmente tidas por radicalmente opostas, se poderiam antes
completar se as personalidades e os aspectos pessoais de ambos para tal
tivessem tido abertura e vontade de compreensão mútua (ver Muntz (2004): Beyond Wittgenstein's poker: new light on Popper and Wittgenstein).
Não é a questão do método que, por si, diferencia o conhecimento
científico. Isto não significa que os métodos experimentais sejam
irrelevantes para a construção da ciência. Mas também não significa
que o carácter experimental, por si, confira valor à atividade
científica, nem que, por si, leve à aceitação obrigatória de factos
científicos pela
comunidade científica.
Também não é a origem das hipóteses: o
essencial é a questão da integração do conhecimento descoberto num
quadro teórico de referência, ou seja, a importância teórica da
descoberta (porventura empírica). Se o conhecimento descoberto nada
acrescenta, quer pelo reforço como pela refutação do quadro teórico
prevalecente, então não tem valor científico. Daí que não haja ciência
fora dos quadros teóricos prevalecentes. Daí que não faça sentido discutir
experiencias, observações, dados novos, fora de um enquadramento
teórico. Khun formalizou bem esta ideia, parte do seu modelo de
transformação de paradigmas em ciência.
Mas se isso é assim em
ciência, já não é necessariamente assim em engenharia e tecnologia,
considerando o que se disse em post anterior. A ideia de que qualquer
desenvolvimento em engenharia e tecnologia tem que ter enquadramento
teórico é errada, e conduz a perversões patéticas - como as tentativas
desastradas para tentar explicar com fundamentos formais da teoria aquilo que é
de natureza tácita e empírica, e por isso inexplicável nessa base.
Este
é um dos dramas da forma como atualmente se pretende
"cientifizar" a engenharia e os doutoramentos em engenharia - e se tende
a desvalorizar algo de eseencial em engenharia. (Existe um problema semelhante na área dos estudos "científicos" de gestão). Fruto da ignorância
das diferenças entre ciencia e tecnologia - uma das grandes desgraças
atuais, segundo o filósofo Joseph Agassi (um dos que melhor conheceu Popper), que não se cansa de o referir.
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