Sunday, February 5, 2012

Ainda a ciência e a tecnologia: a descoberta em ciência e fora dela.

Disse-se que o objectivo da ciência é a descoberta do conhecimento, não é a inovação. Claro que conhecimento adicional pode facilitar inovação - mas não obrigatoriamente.
Clarifique-se um ponto essencial e muitas vezes objecto de confusão: a descoberta do conhecimento não é um exclusivo da ciência. Há muito conhecimento, mesmo formal, estruturado, explícito, cuja descoberta é feita fora do âmbito da ciência, e nada tem de "científico", embora possa ser verdadeiro ou muito plausível como verdade. Científico não é sinónimo de verdade (uma confusão habitual e de consequências por vezes desastrosas).

A obsessão de Popper era o problema (filosófico) da demarcação: o que é que demarca o conhecimento científico do conhecimento não científico (metafísico, na terminologia de Popper. Entre outros, o conhecimento mágico entra aí). Para Popper apenas era relevante o conhecimento formal e explícito - porque é o único que é vulnerável e pode sobreviver à discussão e à crítica formal, logo pode ser falsificável, e eventualmente mostrar-se que é falso (falsificado).
O desprezo de Popper pelas raízes cognitivas do conhecer é bem conhecido, e a principal fonte de críticas às limitações da sua abordagem e do seu pensamento. Polanyi centrou-se precisamente nos aspectos cognitivos do conhecimento para explorar novas formas filosóficas de raiz epistemológica, e por isso mostrava simultaneamente algum apoio a algumas das ideias de Popper, enquanto que rejeitava (e quase que ridicularizava) outras ideias - muito em especial a ideia de Popper de que as origens das hipóteses em ciência (a formulação dos problemas a resolver) são irrelevantes para a sua discussão em ciência, e que não existem fontes de hipóteses mais credíveis do que outras - todas são para abater pela crítica, sendo a principal função da ciência é a eliminação (evidenciar a falsidade) de hipóteses, tenham elas sido propostas como foram. Popper serve-se emblematicamente da célebre carta de Einstein, reproduzida nos anexos da The logic of scientific discovery (1959, ap. xii, pg. 481), em que Einstein reafirma que a fonte de inspiração da sua inquirição sobre a teoria da relatividade nada teve a ver com os problemas da física de então, mas com os seus devaneios pessoais sobre um mundo "virtual" em que ele se deslocasse à velocidade da luz, ou próxima. Polanyi também se serve emblematicamente de outra carta de Einstein, com objectivos semelhantes (capítulo 1 de Personal Knowledge, 1958, p. 10, nota 2). Mas a indiferença de Popper sobre a importância dos aspetos cognitivos do conhecimento foi também uma das suas grande diferenças com o seu "arquinimigo" principal da altura: Wittgenstein, e a sua filosofia de raiz analítica, centrada sobre a linguagem. Peter Muntz terá sido o único a ser discípulo de ambos, e procurou mostrar como as suas filosofias, habitualmente tidas por radicalmente opostas, se poderiam antes completar se as personalidades e os aspectos pessoais de ambos para tal tivessem tido abertura e vontade de compreensão mútua (ver  Muntz (2004): Beyond Wittgenstein's poker: new light on Popper and Wittgenstein).

Não é a questão do método que, por si, diferencia o conhecimento científico. Isto não significa que os métodos experimentais sejam irrelevantes para a construção da ciência. Mas também não significa que o carácter experimental, por si, confira valor à atividade científica, nem que, por si, leve à aceitação obrigatória de factos científicos pela comunidade científica.
Também não é a origem das hipóteses: o essencial é a questão da integração do conhecimento descoberto num quadro teórico de referência, ou seja, a importância teórica da descoberta (porventura empírica). Se o conhecimento descoberto nada acrescenta, quer pelo reforço como pela refutação do quadro teórico prevalecente, então não tem valor científico. Daí que não haja ciência fora dos quadros teóricos prevalecentes. Daí que não faça sentido discutir experiencias, observações, dados novos, fora de um enquadramento teórico. Khun formalizou bem esta ideia, parte do seu modelo de transformação de paradigmas em ciência.
Mas se isso é assim em ciência, já não é necessariamente assim em engenharia e tecnologia, considerando o que se disse em post anterior. A ideia de que qualquer desenvolvimento em engenharia e tecnologia tem que ter enquadramento teórico é errada, e conduz a perversões patéticas - como as tentativas desastradas para tentar explicar com fundamentos formais da teoria aquilo que é de natureza tácita e empírica, e por isso inexplicável nessa base.
Este é um dos dramas da forma como atualmente se pretende "cientifizar" a engenharia e os doutoramentos em engenharia - e se tende a desvalorizar algo de eseencial em engenharia. (Existe um problema semelhante na área dos estudos "científicos" de gestão). Fruto da ignorância das diferenças entre ciencia e tecnologia - uma das grandes desgraças atuais, segundo o filósofo Joseph Agassi (um dos que melhor conheceu Popper), que não se cansa de o referir.

No comments:

Post a Comment